Fazendo e divulgando ciência — um estudo de caso usando a paleontologia
Confira, por meio de um exemplo da paleontologia, por que é fundamental que as iniciativas científicas sejam acompanhadas de ações de divulgação da ciência.
A publicação de trabalhos científicos e de artigos de divulgação de ciência em um mesmo veículo de comunicação é algo raro, mas muito importante, porque aproxima os leitores especialistas e os leigos sobre um determinado assunto. A revista Science é um dos melhores exemplos que temos nesse sentido, fazendo uma excelente divulgação dos artigos científicos que publica.
Recentemente, uma nova espécie muito interessante de um animal foi descrita no periódico Science. Trata-se de um bicho já extinto que é mais próximo de nós, mamíferos, do que das aves e seus parentes extintos, os dinossauros não-avianos. Como não poderia deixar de ser, a revista Science fez uma excelente matéria descrevendo essa “nova” espécie.
Esse animal viveu entre 240 e 200 milhões de anos atrás, ou seja, no Período Triássico. Tinha um visual bem diferente, era herbívoro, com dois enormes dentes caninos, com um tamanho um pouco menor do que o elefante-asiático atual, com mais ou menos 2,5 metros de altura e 4,5 metros de comprimento.
Essa nova espécie descrita pertence ao grupo dos dicinodontes, recebeu o nome científico de Lisowicia bojani, e faz parte da linhagem dos mamíferos, chamada de linhagem sinápsida.
Apesar de ser parte de um grupo já extinto, os dicinodontes compartilham mais características em comum com os mamíferos do que com outros grupos de animais viventes. E isso está gerando bastante confusão na mídia que divulgou a notícia da descoberta desse animal.
A confusão é devido ao fato de que a espécie Lisowicia bojani foi chamada de mamífero extinto, por ser parte da linhagem sinápsida. Em alguns textos sem rigor científico, esse dicinodonte foi até chamado de mamute ou de tio-avô dos mamíferos. E tudo isso está errado.
Chamo a atenção não pelo fato de essas informações estarem equivocadas, mas pela falta de comunicação que existe atualmente entre quem faz ciência e quem divulga essa ciência.
O artigo científico original que descreve o Lisowicia bojani é feito para leitores especialistas no assunto e que pode fornecer interpretações equivocadas para quem não está familiarizado com os termos utilizados.
Nesses casos, é de grande importância que a publicação de um novo artigo científico seja seguido por um outro de divulgação científica que explique em termos mais corriqueiramente utilizados as descobertas da ciência em primeira mão.
Muitos fatores podem estar relacionados com o problema da ciência e de sua divulgação, mas um primeiro passo para melhorar essa comunicação seria checar as fontes, ou seja:
- entender quem escreveu o texto divulgando a ciência;
- verificar se esse autor ou grupo de autores são bons no que fazem;
- avaliar se eles podem interpretar um artigo científico que não foi feito para explicar conceitos, mas para introduzi-los.
Outro passo importante seria estudarmos muito bem determinado assunto antes de escrevermos sobre ele. Aqui no Blog da Ciência temos o post “Entendendo e fazendo ciência: como estudar qualquer coisa?“, que pode te ajudar bastante nisso.
O rigor científico não precisa estar presente apenas em artigos científicos, mas também em outros textos — como o da divulgação e do jornalismo sobre ciência.
Finalizando este texto, gostaria de dizer por que está errado chamarmos o Lisowicia bojani de mamífero, de nosso tio-avô distante ou até mesmo de mamute. Tenho certa familiaridade com o assunto porque trabalho com pesquisa sobre a evolução da linhagem sinápsida que veio antes dos mamíferos.
Ao mesmo tempo que o dicinodonte Lisowicia bojani perambulou por aí, no Período Triássico, também perambulava outro grupo de animais da mesma linhagem sinápsida chamada de cinodontes.
Estes dois grupos de nomes semelhantes, dicinodontes e cinodontes, apesar de partilharem de um ancestral em comum mais recente do que com o restante dos animais da época, já haviam se diversificado. Isso significa que muito provavelmente não poderiam mais cruzar entre si, afinal, já estavam razoavelmente distantes em termos evolutivos.
O interessante é que foi o grupo dos cinodontes, não dos dicinodontes, que originou os mamíferos — e isso é bem evidenciado no registro fóssil e pelas análises morfológicas.
Portanto, não faz sentido chamarmos o dicinodonte Lisowicia bojani de tio-avô de mamíferos ou de mamute da época dos dinossauros, porque o grupo de seres vivos que originaria os mamíferos — os cinodontes — já existia e já havia se diversificado.
Imagem capa: adaptada de A. C. Tatarinov (Licença: CC-BY-SA 3.0)
Biólogo e professor, faz pós-graduação estudando biologia evolutiva. Escreve textos de divulgação científica para o Blog da Ciência. Acredita que o método mais poderoso para a solução de nossos problemas seja a Educação.